Monday, July 26, 2010

desdémona

porque terão os homens de se distrair sempre de nós, porque preferirão os enredos estéreis da politica ou a brutalidade da guerra, porque hão-de ser capazes de mergulhar numa discussão sobre a natureza das estrelas do que de se perder na reclamação de uns olhos que pedem tudo, para sempre, para sempre? porque quando se entregam deveras, ou quando se entregam deveras, podem fundir-nos em puro deleite. mas cansam-se, distraem-se: sao como exteriores ao seu corpo, ás suas sensações, e não podem embeber-se de carne senão em pequenas doses, durante breves acessos de sensualidade que os deixam exaustos e apavorados. logo a seguir, fogem para o comércio ou para a metafísica; logo a seguir, refugiam-se nos seus feitos ou ocupam-se a compor música. para viver têm necessidade de se convencer de que não sentem, mas que pensam ou calculam; para se atreverem a desejar o que na verdade verdade desejam têm de se abarrotar de projectos úteis ou sublimes, até que por fim caem rendidos nos braços do que não sabem apetecer senão como repouso, excesso ou costume.

são assim: para serem capazes de ceder de vez em quando ao extase têm de o considerar como um simples alivio entre duas empresas muito mais importantes porque os comprometem a longo prazo. a paixão desassossega-os e a carne transtorna-os e, secretamente, humilha-os.

fernando savater, na voz de desdémona, ou, desdémona, na voz de fernando savater

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